Proteção farmacológica perioperatória

Bisturi

Foto por Tudor Baker

Todos os pacientes em programação cirúrgica devem ter adequada compensação de suas comorbidades antes do procedimento. Alguns pacientes de risco mais elevado podem se beneficar de intervenções farmacológicas adicionais, além daquelas indicadas para suas doenças atuais. Este conceito, conhecido como farmacoproteção perioperatória, vem sendo amplamente debatido nas últimas décadas; algumas das classes mais utilizadas para este fim são os betabloqueadores, as estatinas e o ácido acetilsalicílico (AAS).

Betabloqueadores

Os efeitos farmacológicos dos betabloqueadores incluem redução da demanda miocárdica e da resposta adrenérgica exacerbada no período pós-operatório.

Em 2005, Lindenauer analisou uma coorte de mais de 780 mil pacientes e verificou associação entre uso de betabloqueadores e redução da mortalidade em pacientes com mais de três fatores de risco de Lee (reveja a classificação aqui). Como todos os estudos observacionais, este não conseguiu demonstrar causalidade entre o uso de betabloqueadores e a redução da mortalidade; porém, este foi mais um sinal para que ensaios clínicos subsequentes pudessem ser realizados.

O maior ensaio clínico com o uso de betabloqueadores foi publicado em 2008. O estudo POISE recrutou 8351 pacientes candidatos a cirurgia vascular com pelo menos um fator de risco para complicações cardíacas (2). Estes pacientes foram randomizados para receber metoprolol ou placebo entre duas e quatro horas antes da cirurgia, sendo mantido por mais 30 dias. Apesar da menor incidência de IAMs, o grupo metoprolol teve mortalidade 33% maior que o grupo placebo, além de aumento de 117% na incidência de AVCs. A conclusão que se pode obter é que não se deve introduzir betabloqueadores de forma pouco cuidadosa em data próxima à cirurgia. Continuamos sem saber se estes pacientes poderiam ter benefício com um regime de titulação progressiva, prosseguindo para a cirurgia com uma dose estável de betabloqueadores.

Recomendações da AHA 2014

  • betabloqueadores devem ser mantidos nos pacientes que já os utilizavam (classe I)
  • a introdução de betabloqueadores no dia da cirurgia é contra-indicada (classe III)
  • em pacientes com isquemia miocárdica de risco intermediário a alto notada em testes de estratificação de risco preoperatórios, pode ser razoável iniciar betabloqueadores no período perioperatório (IIb).
  • em pacientes com três ou mais fatores de risco de Lee, pode ser razoável iniciar betabloqueadores antes da cirurgia (IIb).
  • em pacientes com uma indicação convincente para uso de betabloqueador de longo prazo, mas nenhum outro fator de risco de Lee, iniciar betabloqueadores no período perioperatório para tentar reduzir o risco cirúrgico é uma estratégia de benefício incerto (IIb).

Estatinas

Esta classe de medicações foi estudada principalmente em pacientes submetidos a cirurgias vasculares. Ensaio clínico realizado no Brasil em 2004 indicou redução da mortalidade (5) em pacientes que utilizaram atorvastatina 30 dias antes da cirurgia. Resultados semelhantes foram obtidos em 2009, em uma população de 497 pacientes submetidos a cirurgias vasculares (6).
Embora não haja grandes estudos com estatinas em pacientes sumbetidos a cirurgias gerais, o perfil de segurança associado a esta classe torna sua indicação razoável em pacientes em pacientes de risco mais elevado submetido a estes procedimentos.

Recomendações da AHA 2014

  • estatinas devem ser mantidas em pacientes em uso atual e agendados para cirurgia não cardíaca (I).
  • início de estatinas no período perioperatório é razoável para pacientes submetidos a cirurgia vascular (IIa).
  • a introdução de estatinas no período perioperatório pode ser considerada em pacientes com indicações clínicas baseadas em diretrizes e que serão submetidos a procedimentos de risco elevado (IIb).

Antiagregantes plaquetários

Esta classe de fármacos também é alvo de grande debate, em especial o AAS. Suas principal ação farmacológica é bem conhecida: redução da agregação plaquetária, que pode levar à redução do risco de IAM, mas também ao aumento no risco de sangramento. Como saber em quais situações um risco é maior do que o outro? Como decidir a conduta com maior benefícios para o meu paciente no perioperatório?

Em 2005, uma metanálise de estudos observacionais concluiu que a suspensão de AAS em pacientes que o utilizavam para prevenção secundária levava a um aumento significativo na incidência de IAM e AVC no período perioperatório. Esta metanálise contribuiu para as recomendações de manutenção do uso de AAS nas diretrizes da AHA 2007 e da SBC em 2011.

Porém, em 2014 foi publicado o maior ensaio clínico até hoje testando o uso de AAS no perioperatório (8). O estudo POISE–2 randomizou mais de 10 mil pacientes para utilização de AAS vs. placebo três dias antes da cirurgia até o 7º dia pós-operatório. O desenho deste estudo e as críticas à sua concepção e conclusões podem ser avaliadas aqui.
Em resumo, não houve redução na incidência de IAM ou de mortalidade no grupo que manteve uso de AAS. Como houve exclusão de pacientes com angioplastia recente, além de um número pequeno de cirurgias vasculares neste ensaio, é difícil determinar a representatividade destes resultados para estas populações. Mas para os demais grupos, o POISE–2 teve impacto suficiente para precipitar uma atualização nas diretrizes da AHA em 2014.

Recomendações da AHA 2014

  • introdução ou manutenção de AAS não é benéfica em pacientes submetidos a cirurgia eletiva não cardíaca não carotídea que não tiveram stent prévio, a não ser que o risco de eventos isquêmicos ultrapasse o risco de sangramento cirúrgico (III).
  • em pacientes submetidos a cirurgia não cardíaca de urgência durante as primeiras 4–6 semanas após implantação de um stent, a terapia de antiagregação dupla deve ser mantida, a não ser que o risco relativo de sangramento seja maior que o benefício da prevenção de trombose de stent (I).
  • em pacientes que receberam stents coronarianos que devem ser submetidos a procedimentos cirúrgicos que demandem suspensão de inibidor P2Y12 (clopidogrel, prasugrel, ticagrelor), é recomendado que a terapia com AAS seja mantida se possível e o inibidor P2Y12 seja reintroduzido o mais precocemente possível após a cirurgia (I).
  • o manejo da terapêutica antiplaquetária deve ser determinado por consenso entre o cirurgião, anestesista, cardiologista e paciente, que devem pesar os riscos relativos de sangramento versus a prevenção de trombose do stent (I).
  • Em pacientes submetidos a cirurgia não cardíaca eletiva que não tiveram stent coronariano prévio, pode ser razoável manter o AAS quando o risco potencial de eventos cardíacos for maior que o risco de aumento do sangramento (IIa).

Conclusão

A farmacoproteção perioperatória é mais uma ferramenta útil para a redução das complicações cardíacas. A indicação de cada um de seus componentes deve ser avaliada individualmente, pesando-se os riscos e benefícios conhecidos na literatura até o momento.

Referências

1) Lindenauer PK, Pekow P, Wang K, Mamidi DK, Gutierrez B, Benjamin EM. Perioperative beta-blocker therapy and mortality after major noncardiac surgery. N Engl J Med. 2005;353(4):349–61.

2) POISE Study Group. Effects of extended-release metoprolol succinate in patients undergoing non-cardiac surgery (POISE trial): a randomised controlled trial. The Lancet. 2008; 371(9627):1839–47

3) Fleisher LA, Fleischmann KE, Auerbach AD et al. 2014 ACC/AHA Guideline on Perioperative Cardiovascular Evaluation and Management of Patients Undergoing Noncardiac Surgery: A Report of the American College of Cardiology/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines. J Am Coll Cardiol. 2014;64(22):e77-e137. doi:10.1016/j.jacc.2014.07.944;

4) II Diretriz de Avaliação Perioperatória da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Arq Bras Cardiol 2011; 96(3 supl.1): 1–68.

5) Durazzo A, Machado F, Ikeoka D et al. Reduction in cardiovascular events after vascular surgery with atorvastatin: a randomized trial. J Vasc Surg 2004. 39(5): 967–75

6) Schouten O, Boersma E, Hoeks SE, et al. Fluvastatin and perioperative events in patients undergoing vascular surgery. N Engl J Med. 2009;361(10):980–9.

7) Burger W, Chemnitius JM, Kneissl GD, Rücker G. Low-dose aspirin for secondary cardiovascular prevention – cardiovascular risks after its perioperative withdrawal versus bleeding risks with its continuation – review and meta-analysis. J Intern Med. 2005;257(5):399–414.

8) Devereaux PJ, Mrkobrada M, Sessler DI, et al. Aspirin in patients undergoing noncardiac surgery. N Engl J Med. 2014;370(16):1494–503.

9) Vaishnava P, Eagle KA. The yin and yang of perioperative medicine. N Engl J Med. 2014;370(16):1554–5.

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